Dá Pedal

Toda e qualquer pedalada tem um começo e um destino. Mas sempre tem um desafio. Pode ser uma montanha, uma serra, a chegada triunfante numa cachoeira. Ir de encontro ao mar. Portanto existem múltiplas razões para irmos a algum lugar, podendo até estar misturados alguns ingredientes, como por exemplo, turismo, prática esportiva, contemplação de paisagens, história, culto a alguma alusão religiosa, etc.
Mas sempre o prazer de pedalar. E com a sensação deliciosa de nos locomovermos num veículo que não degrada o meio ambiente, não polui e nos deixa com uma ótima qualidade de vida.
A marca, a idéia do nome e do próprio blog foi de um grande amigo, o publicitário Sergio Quadros. Como já sou quase sexagenário, meu apelido é "Velho" e o nome "Dá pedal" faz alusão à uma expressão muito usada insinuando que alguma coisa pode dar certo. A arte da marca, que achei sensacional, foi me dado de presente por ele, e tem como moldura uma coroa da bicicleta, mas deixando passar também a mensagem do coroa que está na foto, permitindo a todos se sentirem capazes de pedalar.
Ou seja, " Dá Pedal !!"

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

L'etape du Tour de France 2008






L’Etape do Tour de France

O continente europeu é certamente o lugar onde vemos o uso da bicicleta com maior interferência (positiva) na vida do cidadão. Em muitas cidades (por exemplo, Amsterdam) as ciclovias estão presentes em quase todos os bairros e, mesmo nos meses frios, vemos as pessoas circulando pela cidade para trabalhar, passear e fazer compras, pois é muito comum bicicletas com cestos para cargas pequenas e os bicicletários estão presentes em quase todas as esquinas, estabelecimentos comerciais e públicos.
O que impressiona muito é o respeito que pedestres e principalmente motoristas em seus bólidos têm pelos ciclistas. Em Paris, aluguei várias vezes as super-práticas bicicletas de aluguel (VELIB) e lá se pedala em todos os cantos, mesmo onde não há ciclovias e compartilhamos as ruas com os automóveis. Uma vez eu estava numa avenida de grande movimento (a famosa Champs-Elisées) e precisava cruzá-la para dobrar à esquerda. Sinalizei com o braço e tive caminho livre com os carros diminuindo a marcha, me dando passagem. Logicamente fiz isso após observar atitudes semelhantes dos locais. É sensacional! Como também é sensacional ver os ciclistas observar plenamente as leis de trânsito. Não tem como não me espantar ver um ciclista parar ao sinal vermelho, às 2 da manhã, sob uma garoa fria. E não foi uma exceção, isso é a regra.
Quando estive na Espanha para fazer o Caminho de Santiago, resolvi fazer um desvio e utilizei uma estrada asfaltada de mão dupla durante alguns quilômetros. Aquela mesma rotina: asfalto lisinho, acostamento largo e sinalização perfeita. Causou-me espanto que os carros no mesmo sentido me ultrapassavam lá pela outra pista, como se eu estivesse na pista normal de rolamento. Após perceber tal atitude, passei a observá-los com mais atenção: quando se aproximavam de mim, acionavam a luz de direção, passavam para a contramão e voltavam a sinalizar para retornar à pista normal. Isso tudo mesmo se eu estivesse ocupando a parte do acostamento mais distante possível da estrada. Um deles repetiu o procedimento padrão, mas como vinha um carro em sentido contrário, reduziu a marcha e só me ultrapassou (lá pela contramão) quando o outro veículo passou.
Na Alemanha não é diferente. Uma vez conversei com um motorista que me cedeu a passagem de forma acintosa, que me disse a razão do seu enorme respeito. Primeiro que também usa muito sua bicicleta, principalmente em pequenos trajetos e tem plena consciência do quanto é bom esta atividade para a nossa qualidade de vida. E que as leis de trânsito são tão rigorosas e as penalidades são tão altas que o que ele menos quer na vida é atropelar um ciclista.
Conclusão: sinto uma enorme inveja disso!

Não se pode pensar em ciclismo sem mencionar as grandes voltas européias. As mais charmosas e mais badaladas são o Tour de France e o Giro d’Italia. São competições profissionais com duração de quase um mês, com grande cobertura da mídia e que aglutinam uma quantidade para nós absurda de pessoas pelos lugares por onde passam, que vão às ruas ver, torcer e incentivar os atletas coloridos pelos uniformes da várias equipes, sem contar nas milhões de pessoas que assistem pela TV as provas ao vivo.
A organização dessas duas “voltas” no intuito de saciar o desejo dos milhares de ciclistas amadores espalhados mundo afora organiza uma etapa só para eles, com o mesmo percurso realizado pelos profissionais. Assim, alguns dias antes desses, e enquanto estão em outra localidade, as ruas, estradas e montanhas são invadidas pelos aficionados anônimos que, ao invés dos altos salários e a enorme estrutura das equipes, viajam milhares de quilômetros e ainda pagam para pedalar. E se estamos acostumados a achar que uma prova ciclística por aqui está muito concorrida com 1000 atletas, essas etapas, esgotam em menos de uma semana as 9000 vagas disponíveis.
Durante uma pedalada por algum dos muitos belos percursos de Nova Friburgo, em meados de 2007, um amigo, o dentista e ciclista Orlando Mielli (atualmente diretor de maratonas da Federação de Ciclismo do Rio de Janeiro) me propôs:
- queria te fazer uma proposta indecorosa: vamos ao l’etape do Tour ano que vem?
Bem, não foi exatamente uma proposta indecorosa, pois eu já tinha vontade de ir. Por isso topei na hora.
Daí em diante começamos a procurar as empresas que agenciam os interessados. Hoje em dia (posso estar enganado!) são duas Agencias de Turismo que conseguem pré-reserva de vagas para brasileiros na inscrição: a Kamel Turismo (RJ) que leva os ciclistas liderados por Walter Tuche e a Tambaú Turismo, cujos atletas vão sob a liderança de Cleber Anderson (Anderson Bicicletas – SP). Fizemos a pré-incrição, já sabendo que a etapa começaria em Pau, no sul da França e terminaria no alto da Hautacam, passando pelo majestoso, mítico e temido Tourmalet (ambas as montanhas fora de classificação – hors serie), num total de 169 quilômetros.
A inscrição foi só o inicio de tudo. Era preciso treinar, treinar e treinar. Mais do que eu já pedalava. Eu já era aluno da Rio Saúde, assessoria esportiva do Roberto Tadao (Dum), portanto, relatei meu objetivo para o ano que viria e meu treinamento foi direcionado para julho de 2008, exatamente no dia 6, quando eu deveria estar pedalando pelos Pirineus. O Orlando contratou a assessoria do Alan Inoue, o Japa (Nova Friburgo) e também passou a receber as planilhas para treinamento.
E foi o que fizemos: pedalar, pedalar e pedalar. Nas horas vagas trabalhar , para poder continuar “patrocinando” nosso hobby.
Já em abril de 2008, após milhares de quilômetros pedalados, tive uma pedra, aliás, uma pedreira no caminho: dengue hemorrágica. Depois do risco que tive, com as plaquetas sanguíneas lá em baixo, causado por um infeliz mosquito, certamente parceiro dos políticos ineptos que temos, fiquei mais de um mês sem encostar as mãos na bicicleta. E com uma prova tão dura pela frente, alguma dívida teria que ser paga no futuro. Mas lentamente voltei aos treinos e fui ganhando confiança e voltando gradativamente ao condicionamento físico.
Viajamos para a França com um grupo de 36 brasileiros, do Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia, São Paulo, Campinas, Curitiba, João Pessoa, São Luiz e Vitória. E logo no primeiro dia parecíamos amigos há muito, pois o ambiente descontraído foi a tônica durante todo o período, favorecido pelo lindo lugar que ficamos, um aconchegante hotel em Argelez-Gazost, uma pequena cidade aos pés dos Pirineus. Nos dias iniciais continuamos nossas pedaladas pelas estradas do sul da França, conhecendo lindos lugares, sempre espantados com a deferência com que os motoristas nos dispensam.
Dois dias antes da prova (sexta-feira) voltamos a Pau para retirar os kits do atleta, debaixo do sol forte, anunciando o que é contumaz no L’Etape du Tour: calor extremo do verão francês, que sempre causa muitas desistências e muitos atendimentos nos postos médicos. Mas nós acreditávamos que o treinamento tinha sido correto, já que sempre treinávamos sempre que possível na hora mais quente dos dias no nosso fraco inverno. Portanto, segundo nossa avaliação, estávamos preparados para a sauna francesa, até porque calor no Rio de Janeiro não é novidade.
Porém, no dia seguinte, véspera da prova, uma frente fria fez a temperatura despencar e a chuva fina constante era o prenuncio que tudo seria bem molhado. E foi exatamente sob chuva, mas forte, e frio que acordamos às 4 da manhã para nos juntarmos aos outros 9000 ciclistas que, por mais de uma hora esperou pacientemente debaixo da mesma chuva, soar o sinal de largada, às 7 horas da manhã.
Os primeiros 70 km foram de muita água. Ela vinha de cima intensamente e de baixo, levantada pelos 18000 pneus. Eu e o Orlando combinamos de fazer a prova juntos, apesar de ele ser mais rápido do que eu, pois por ser uma prova com duração estimada de 10 horas, ter companhia é muito bom. Íamos trocando de pelotão em pelotão, mantendo uma boa média horária. Mas fui surpreendido por um furo no meu pneu dianteiro, mais ou menos no km 60. Fiquei extremamente irritado, já que havia feito investimento num pneu (caro) sem câmara e mais resistente a furos. Devido ao frio, fiquei todo enrolado para realizar o conserto que, somado ao fato de ver uma multidão de ciclistas nos passando, minha irritação quase se transforma num “piti”. E aí foi fundamental a ajuda do Orlando, que acabou fazendo o reparo no pneu. Mas perdemos muito, muito tempo mesmo.
Chegamos então na base no Toumalet encharcados e preocupados com a tempo de corte, já que quase no topo da montanha, teria uma cancela pronta para barrar quem não estivesse dentro do tempo máximo. O jeito era apertar o ritmo, que ia ficando cada vez mais duro e cada vez mais frio. Perto do cume, a visão de alguns atletas sendo atendidos com hipotermia, a chuva fina, o frio, a falta total de paisagem causado pelo denso nevoeiro, o cansaço e, no meu caso, a dívida que eu tinha contraído por causa da dengue hemorrágica, foram decisivos em me esgotar as forças. Parei!
O Orlando quando se viu sozinho, voltou a minha procura e queria diminuir o ritmo para continuar comigo. Mas fui incisivo que se assim ele o fizesse, eu pararia em definitivo. E aí os dois seriam cortados. Portanto, o convenci de continuar.
Descansei um pouco e voltei a pedalar. Cheguei no topo dos 2115 m do Tourmalet, com a temperatura em torno dos 2 C e passei pela cancela ainda no tempo. Comecei a descida fatigado e sentindo muito frio. Como não conseguia acionar os freios corretamente por causa da mão quase congelada para controlar o dowhill de 30 km, parei mais uma vez tentando me aquecer. Nessa decidi:
- chega! Vou descer bem devagar e me dirigir ao hotel para um banho bem quente.
Porém, à medida que ia descendo a montanha, a temperatura ia subindo e por causa da ausência da chuva naquele momento, a sensação térmica de frio diminuiu significativamente, revogando minha decisão de parar. Voltei a pedalar forte. Cheguei na base do Tourmalet e entrei num pequeno pelotão para me ajudar a vencer os 5 km que nos separavam da base dos 15 quilômetros de subida para o Hautacam.
Mas entre a minha determinação em prosseguir e a subida da montanha havia outra cancela, agora fechada pelo tempo limite que me impediu de subir. Não posso dizer que foi uma grande frustação, pois o banho de banheira quente no meu hotel, não muito longe dali estava delicioso e reparador.
O Orlando chegou ao final e depois desceu (quase congelado) triunfante o Hautacam. O que ocorreu também com os outros brasileiros. Porém além de mim, três outros patrícios não conseguiram concluir e foram vencidos pelo Tourmalet, sendo que a única mulher, Alessandra, foi vencida pelo frio quase no topo da montanha.
No dia seguinte, com todo mundo já descansado e limpo, fui convidado a comparecer no quarto de hotel do Cleber Anderson e o Pedro Pires. Fizeram uma “solenidade” e me entregaram a medalha de finisher, já que venci a montanha mais alta. Claro que a guardo com carinho e até hoje não sei se um deles abdicou da sua medalha ou se conseguiram uma reserva. O importante é que está bem visível no meu escritório, me fazendo lembrar deles, da turma, da viagem e que ainda preciso buscar eu mesmo uma igual.


* * *

A ida para uma prova como esta não é um programa barato, pois o investimento com a passagem aérea, o hotel, alimentação e a própria inscrição promovem uma erosão considerável nas nossas reservas. Mas não há dúvida que o desafio é atraente e vale à pena. Ainda mais se somarmos o fato de sempre pedalarmos por lugares muito bonitos nos dias que precedem a prova como parte do treinamento final e adaptação ao fuso horário e também pela possibilidade e assistir etapas do Tour de France com os profissionais (geralmente incluídos no pacote turístico) e, junto com milhares de aficionados, ciclistas ou não, fazer parte da história do ciclismo.

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